O Primeiro 6.000, a gente nunca esquece…

Em dezembro de 1995, eu desembarcava novamente em Mendoza, cidade Argentina situada nos pés da cordilheira dos Andes, com o objetivo de chegar ao topo de duas montanhas no período de 10 dias. Exatos onze meses antes, eu havia feito uma tentativa de chegar ao cume do Aconcágua, maior montanha do Ocidente com 6.959 metros. Esta tentativa fracassara devido ao mau tempo persistente, que obrigou, eu e mais dois amigos, a ficarmos fechados dentro de uma barraca por três dias, no último acampamento (Berlim), esperando uma melhora no tempo para podermos fazer o ataque ao cume. Estávamos alto demais, no momento errado. O tempo ruim persistiu, nossas forças se esvaíram e decidimos voltar. Ao chegar novamente à civilização e tomar o primeiro banho quente depois de três semanas, prometi a mim mesmo nunca mais voltar à montanha. Desde então, apesar de estar sempre refazendo esta promessa, nunca consegui cumprí-la. Voltando ao meu objetivo, a primeira das duas montanhas, o “Cerro de los Penitentes” de 4.510 metros, foi escalada em três dias, sendo que o terceiro dia foi reservado para voltar a Mendoza, um breve retorno ao conforto e preparação para o deslocamento até a base do “Cerro Del Plata”, ponto culminante do “Cordón del Plata”, com 6.050 metros e o meu próximo objetivo. No dia seguinte, parti, junto com um grupo de amigos Argentinos, para uma estação de esqui situada na base da montanha. A partir daquele ponto, bastavam dois acampamentos, sucessivamente mais altos, e chegaríamos ao cume. Na teoria, tudo parecia simples… O primeiro dia de subida consistiu em uma subida leve até os 3.400 metros, onde acampamos para iniciar uma aclimatação rápida. A aclimatação é fundamental para que o organismo possa se acostumar com a falta progressiva de oxigênio a medida em que se ganha altitude. Na manhã seguinte, subimos até o último acampamento, ou campo-base, a 4.100 metros e de onde, no dia posterior, partiríamos para o cume. Aos 4.000 metros, a falta de oxigênio já ocasiona dor de cabeça e cansaço. Qualquer movimento apressado acelera o batimento cardíaco e causa tontura. Apesar da beleza do local ao redor, não me senti disposto a nada, além de tirar fotos e ficar deitado, comendo e descansando para a subida extenuante que estava por vir. Durante a noite, nevou sem parar, mas o dia amanheceu limpo e ensolarado. Às 6:30 estávamos saindo em direção ao cume, quase 2.000 metros acima e a no mínimo, 8 horas de caminhada. Ao atingir os 5.000 metros comecei a me sentir enjoado e com ânsia de vômito, sintomas normais de uma subida muito rápida. Pensei várias vezes em desistir e voltar para o campo-base, mas sempre era estimulado pelo meu amigo Argentino, que retardou sua subida para acompanhar o meu passo. Segui seu conselho de não olhar para frente e pensar somente em colocar um pé na frente do outro, dar 15 passos e parar para recuperar a respiração. Poucas situações ilustram tão perfeitamente o que significa vencer um desafio, passo a passo. Concentrado somente no próximo passo e alheio à vista magnífica que se apresentava ao meu redor, chegamos ao cume por volta das 15:00 horas, quase nove horas depois de partirmos do campo-base. Assinei meu nome no “livro de cume” e tirei duas fotos, sentado, pois estava exausto e completamente nauseado. Permanecemos pouco mais de 30 minutos no cume e começamos a descer pelo mesmo caminho de subida. Durante a descida, parei duas vezes para vomitar o pouco que havia comido no café da manhã e terminei me distanciando do meu amigo, o qual julgou não haver perigo em me deixar sozinho na descida. De fato, descer sozinho não teria sido um problema se o tempo não fechasse e a visibilidade não se reduzisse a uns poucos metros. Sem poder me orientar pelas montanhas vizinhas, segui a trilha marcada na subida e confiei no fato de que alguém certamente deveria estar me esperando no caminho. Continuei descendo por mais algum tempo até chegar em um ponto em que suspeitei estar perdido. Parei e esperei as nuvens se dissiparem um pouco para poder olhar ao redor e me localizar. Já eram quase 18:00 horas e o sol já havia se escondido atrás da montanha, restando somente sua luminosidade indireta. Acreditava não estar longe do campo-base e, assim, teria tempo de luz suficiente para chegar no mesmo. Meus problemas começaram no momento em que o tempo abriu e eu pude enxergar as montanhas vizinhas sem conseguir reconhecê-las. Estava cansado, sem comer desde o café da manhã e com sede. Fechei os olhos e procurei refazer o caminho de descida, tentando identificar onde havia me enganado. Olhei para trás e avistei o contorno de uma montanha conhecida. Não havia mais dúvidas: eu havia descido pelo caminho errado e estava em um vale vizinho ao da subida. Mesmo extremamente cansado, nada disso seria preocupante se eu tivesse mais tempo de luz, mas subir novamente até o ponto em que eu errei o caminho levaria uma ou duas horas, das quais eu não dispunha. Realizar parte do trajeto no escuro era perigoso, pois existiam trechos próximos a acarreos que exigiram atenção durante a subida. Transpô-los na escuridão seria arriscado demais (e a lanterna frontal? Pois é, durante a subida, devido ao cansaço, eu deixei minha mochila no trajeto e, dentro dela, imprudentemente, a lanterna frontal…). Decidi procurar um local plano e passar a noite ao relento, esperando os primeiros raios de sol para reencontrar a trilha. Ajeitei-me para passar a noite mais longa de minha vida. Rezei para que não nevasse, nem ventasse, pois estava completamente desabrigado. Coloquei as mãos nos bolsos para esquentá-las e achei barras de chocolate que eu havia reservado para a descida. Improvisei o recipiente do filme que carregava e utilizei-o como um pequeno copo para beber água de um pequeno glaciar próximo ao local onde eu estava, mesmo sabendo que meu organismo não reteria aquela água por ela não conter sais minerais. É difícil acreditar que uma pessoa possa morrer desidratada ao lado de uma fonte de água tão pura. A noite demorou para passar. Procurei não dormir, com medo de ter os dedos dos pés congelados. A todo instante, tirava as botas e massageava os dedos, tentando mantê-los aquecidos. No horizonte, eu enxergava as luzes da cidade de Mendoza, apesar de estar a quase cem quilômetros de distância. Ficava imaginando as pessoas nas ruas, bebendo cerveja, comendo, sentindo calor e dormindo tranqüilas, ao passo em que eu começava a tremer involuntariamente de frio, e lutava contra o sono e a fadiga. Lembrei-me de que os Argentinos iriam descer direto até a estação de esqui e deixariam a barraca no campo-base para eu passar a noite e descer no dia seguinte. Em resumo, ninguém sabia que eu estava em apuros. A minha ausência só seria sentida no final do dia seguinte. Indiferente a tudo isto, a noite seguiu seu curso e eu saudei, como nunca havia feito antes, a primeira luminosidade do sol que despontava no horizonte. Levantei-me e recomecei o caminho de volta. Sem que eu soubesse, um grupo de canadenses já estava a minha procura ao notar que eu não havia voltado para o campo-base na noite anterior. Eles haviam nos acompanhado até parte da subida e voltaram. Na noite anterior, eles falaram, via rádio, com Mendoza e avisaram que “le grimpeur Brésilien” não havia voltado do cume. Encontrei-os no caminho e fiquei sabendo que os argentinos já estavam a caminho para me levar de volta para Mendoza. Naquela noite, em Mendoza, organizamos um churrasco para repor os 6 kilos que eu havia perdido em quatro dias na montanha. Novamente, refiz a promessa de nunca mais voltar à montanha.
Em dezembro de 1996, eu estava de volta ao mesmo lugar.

Por Anderson Bocchi, sócio da AGM (Associação Gaúcha de Montanhismo)

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