Cordón del Plata – Temporada 2004-2005

Por Lucas Hainzenreder Longhi

Capítulo 1 – A Partida. Depois de quase nove meses de planejamento minucioso, meu amigo Ígor e eu partimos rumo à Argentina para conhecer algumas montanhas da Cordilheira dos Andes. Tínhamos planejado a expedição com nosso amigo Thomas Schulze, mas infelizmente, de última hora, ele não conseguiu nos acompanhar. Escolhemos o Cordón del Plata, uma das principais cadeias de montanhas próximas à cidade de Mendoza, na Argentina, como local para a escalada. É nesse cordão que nascem os principais rios que abastecem a cidade e seus canais de irrigação construídos nas ruas. Partimos de Porto Alegre no dia 27 de dezembro de 2004 e, após dois dias de viagem de ônibus, chegamos a Mendoza. A jornada foi cansativa, mas ficamos emocionados ao chegar à cidade, pois pela janela do ônibus era possível ver várias montanhas nevadas no horizonte.

Capítulo 2 – Rumo às montanhas. Após um dia de descanso e passeio pela cidade, partimos em direção à estação de esqui de Vallecitos, ponto de partida para as escaladas no Cordón del Plata. Levantamos cedo, tomamos café da manhã e organizamos os últimos detalhes. Ígor comprou um livro ilustrado sobre o Cordón, que mostrava fotos e detalhes das rotas de escalada, o que se revelou muito útil para nós. Uma van chegou ao albergue e seguimos em direção às montanhas. A estrada até lá era de terra, sinuosa e proporcionava uma bela vista das montanhas. Tínhamos fretado a van só para nós, e durante o trajeto, paramos algumas vezes para apreciar a paisagem e esfriar o motor. Ao chegarmos à estação de esqui, percebemos que estava praticamente deserta, pois no verão não havia neve suficiente para esquiar naquela altitude. Além disso, era véspera de Ano Novo, o que reduzia ainda mais o número de pessoas no local. Após nos despedirmos do motorista, organizamos nossa bagagem em um pequeno casebre. Sentíamos como se estivéssemos em um vilarejo fantasma. Dirigimo-nos à sala de uma operadora de esqui, onde conversamos com os funcionários que estavam lá cuidando do local. Tivemos que preencher e assinar alguns formulários que isentavam o governo e as empresas de qualquer responsabilidade… e assim por diante. No campo destinado a “em caso de emergência, entrar em contato com…”, colocamos os nomes de nossos amigos Thomas Schulze e Juliano Perozzo.

Capítulo 3 – Primeiro acampamento. Após preenchermos o cadastro, iniciamos a subida em direção ao primeiro acampamento, Las Veguitas, localizado a 3.250 metros de altitude. Movidos pelo desejo de conquistar a montanha, acabamos negligenciando um pouco o processo de aclimatação, o que resultou em sérios problemas para mim devido à altitude. Após montar a barraca em Veguitas, comecei a me sentir estranho, experimentando náuseas intensas e tontura. Meu corpo não estava reagindo bem à altitude, o que me causava grande desconforto. A pergunta que ecoava em minha mente era: “Será que conseguirei subir mais?” Durante os três dias seguintes, estabelecemos nosso acampamento e permanecemos praticamente “estacionados” nele. Tentamos, por duas vezes, realizar a ascensão do Cerro San Bernardo, que possui 4.200 metros de altitude, mas infelizmente tivemos que desistir devido às condições climáticas adversas. O Cordón del Plata apresenta um clima bastante peculiar, com mudanças constantes e chuvas de granizo frequentes ao final da tarde nos acampamentos de altitudes mais baixas. Apesar dos contratempos causados pelo clima, foi muito interessante passar esse tempo no acampamento. Conhecemos um casal de argentinos, Manuel e Valentina, que nos deram ótimas dicas sobre a região, especialmente sobre as trilhas que levam às montanhas.

Capítulo 4 – Segundo acampamento. Após passarmos alguns dias em Las Veguitas, seguimos em direção ao acampamento de Piedra Grande, localizado a 3.500 metros de altitude, onde ficaríamos por mais dois dias. Nossa intenção inicial era escalar o Cerro Adolfo Calle e o Cerro Stepanek, duas belas montanhas localizadas abaixo do Cerro Rincón, no lado direito do cordão. No entanto, eu e Ígor chegamos à conclusão de que realizar – ou tentar realizar – essas escaladas poderia nos desgastar fisicamente, prejudicando assim a nossa escalada principal: o Cerro Plata. O problema no acampamento de Piedra Grande foi com a água. Assim que cheguei lá e montei minha barraca, fui buscar água em um rio formado pelo degelo de um glaciar. Ao chegar à margem, fiquei surpreso ao ver um rio de águas escuras, mais parecendo um rio de lama. No entanto, eu já esperava por isso, e, dentre os males, essa era a melhor opção. Nos dias anteriores, não estava dormindo bem, acordando frequentemente durante a noite com uma sensação horrível de falta de ar, o que estava me deixando muito cansado. Após passar um tempo no acampamento de Piedra Grande, comendo bem e fazendo amizades com alguns argentinos, seguimos para o último acampamento chamado El Salto. Havia a possibilidade de acampar ainda mais acima, em La Hoyada, porém, esse local era um pouco isolado e mais frio durante a noite. Seguindo as recomendações de várias pessoas, decidimos que El Salto seria o nosso último acampamento e a base para a tentativa de alcançar o cume. Ainda em Piedra Grande, Ígor e eu nos reunimos e planejamos nossa agenda para os próximos dias. Nossa estratégia foi eliminar o máximo de peso possível das mochilas. Deixamos minha barraca montada com alguns equipamentos e mantimentos extras e seguimos para El Salto com uma carga mais leve.

Capítulo 5 – El Salto, o acampamento base. O caminho para o acampamento de El Salto é um dos mais difíceis, com subidas íngremes e estreitas. No dia anterior, subimos até lá sem as mochilas para conhecer a trilha e nos acostumarmos melhor com a altitude. Ao montarmos o acampamento em El Salto, procurei um lugar isolado em uma pedra e fiquei contemplando o anoitecer. Li a carta que Thomas havia me entregado antes de partirmos e muitas lembranças vieram à tona. Refleti sobre todo o caminho difícil que percorremos para chegar até ali e senti uma imensa gratidão por toda a jornada. No final da tarde, Ígor e eu apreciamos o pôr do sol. A noite foi terrível, com ventos extremamente fortes. Acordei diversas vezes e, pela manhã, ouvi dois argentinos partindo em direção ao cume. Nós nos levantamos um pouco mais tarde, pegamos os piolets e crampons para treinarmos a técnica de queda em neve em uma área nevada próxima a La Hoyada, alcançando uma altitude de 4.610 metros. No entanto, não me senti bem durante o dia e tive uma leve dor de cabeça. Retornamos ao acampamento e soubemos que os argentinos que tentaram o ataque ao cume não tiveram sucesso devido aos fortes ventos e ao frio intenso, sendo obrigados a desistir.No dia seguinte, seria a nossa vez de tentar. Escrevi a seguinte frase em meu diário: “Amanhã é a nossa oportunidade de pisar no cume. O tempo não está bom, não sei o que nos espera. Ao final da tarde, observo as pessoas arrumando suas barracas, cozinhando, admirando a paisagem, e tento imaginar o que se passa em suas mentes.” Embora estivesse um pouco nervoso na noite anterior ao ataque ao cume, foi a melhor noite de sono que tive. Descansei bastante e o vento estava praticamente ausente.

Capítulo 6 – Ataque ao cume. Acordamos com o despertador às 4h30min e ignorei a preguiça, iniciando imediatamente os preparativos para o grande dia que estava começando. Na noite anterior, tínhamos fervido água e armazenado em garrafas térmicas para que não precisássemos sair da barraca para preparar o café da manhã. Além de economizar tempo, isso evitava a exposição ao frio. Poucos minutos após tomar o café, abri o zíper do “avanço” da barraca e peguei as duas meias que havia deixado lá. Troquei as meias de lã, que me mantiveram aquecido durante a noite, pelas meias de polipropileno geladas. Coloquei todas as minhas roupas e já senti um intenso frio nos pés. Saí da barraca segurando um saco de granola para comer enquanto caminhava. Assim que coloquei os pés para fora da barraca, olhei na direção oposta às montanhas e fiquei paralisado com a paisagem diante dos meus olhos. Um mar de nuvens cobria tudo o que estava em altitudes mais baixas. Acima das nuvens, parecia não haver espaço suficiente no céu para tantas estrelas. Mesmo sem lua cheia, a luminosidade da noite permitia que eu enxergasse tudo ao meu redor. O silêncio no acampamento só foi quebrado por mim e pelos amigos argentinos que também estavam tentando o cume. Todos estavam dormindo nas quase dez barracas espalhadas pelo acampamento. O vento estava fraco, porém suficiente para reduzir a sensação térmica a pelo menos 15 graus abaixo de zero. Raios e relâmpagos iluminavam constantemente as nuvens abaixo de nós. Era como observar uma chuva pelo lado de cima da nuvem. Naquele momento, senti-me perdido em outro mundo, verdadeiramente imerso em um ambiente inóspito.Fui até a barraca dos amigos argentinos e conversei com eles, expressando minha preocupação de que aquela chuva pudesse subir em direção à montanha e se transformar em uma nevasca. Apesar de não me explicarem detalhadamente, eles me tranquilizaram dizendo apenas que “ela não iria subir”. Testei minha lanterna e verifiquei os equipamentos essenciais. Informei a Ígor que iria na frente, caminhando lentamente. Saí devagar e vi uma estrela cadente no céu, fazendo um pedido. Continuei a caminhada, sentindo o ar gelado, e constantemente olhava para trás para verificar se conseguia ver a lanterna de Ígor. Seguia em direção a La Hoyada, envolto pela brisa gelada, pelo silêncio e pela imensidão daquele lugar desolado, como se estivesse caminhando na lua. Meus pés estavam bastante gelados e eu os movia constantemente. No entanto, cometi um pequeno erro antes de sair da barraca, que acabou custando o cume da montanha. Na noite anterior, deixei minha primeira camada de meias (polipropileno) no avanço da barraca, então elas ficaram extremamente geladas devido ao frio da noite. Naquela madrugada extremamente fria, ao me vestir, tirei as meias de lã que aqueciam meus pés e coloquei as meias geladas. O resultado foi previsível: após meia hora de caminhada, meus pés começaram a apresentar dormência de frio. Eu movimentava os dedos constantemente na tentativa de aquecê-los, mas a situação não melhorava. Parecia que meu pé estava inchado, rígido e congelado. Dois amigos argentinos que estavam fazendo o ataque ao cume com a gente tiraram minha bota esquerda (que estava em pior estado) e colocaram uma sacola plástica para tentar reter o calor. Decidi continuar mesmo nessas condições, seguindo até onde conseguisse ver o sol, na esperança de aquecer meus pés naturalmente. Após chegar a Portezuello (a crista que conecta o Cerro Vallecitos ao Cerro Plata), cruzei com dois argentinos de Mendoza. Naquele momento, o vento estava tão forte que o diálogo entre nós se tornou impossível, e tínhamos dificuldade em ficar de pé, pois as rajadas quase nos derrubavam. Descansei por cinco minutos e continuei em direção ao cume do Plata. Cerca de uma hora depois, olhei para trás e não vi ninguém seguindo atrás de mim até o Portezuello, onde meu parceiro e os argentinos surgiram. Após um descanso prolongado, decidi continuar sem a mochila. Peguei apenas o essencial e prossegui com a caminhada. No entanto, não conseguia caminhar corretamente, parecia que havia perdido o equilíbrio de repente. Não sentia meus pés adequadamente, estavam completamente adormecidos. Assustado com a situação, achei prudente retornar ao acampamento. Fiquei muito indeciso durante esse momento, pois estava próximo ao cume, e realmente não sabia o que estava acontecendo comigo. Decidi que não valia prosseguir e voltei rapidamente para o acampamento. Durante o trajeto, senti dores nos dedos e uma sensação terrível de formigamento. Um médico que estava lá deu uma olhada e disse para eu aquecer os pés com uma boa meia, que passaria. Logo depois, soube que cerca de duas horas após eu ter começado a descer, meu amigo Ígor e um dos argentinos haviam alcançado o cume. No dia seguinte, descemos até a estação de esqui de Vallecitos em uma caminhada longa e demorada. Passamos pelo acampamento de Pedra Grande, onde recuperamos os equipamentos que tínhamos deixado para trás.

Capítulo 7 – Retorno e novos planos. Voltamos de carona com os argentinos até Mendoza. O carro ficou lotado com tantas mochilas. Descansamos alguns dias na cidade, aproveitando para recuperar as energias. Meu amigo Igor decidiu voltar ao Brasil, mas eu ainda tinha sede de aventura e decidi continuar a viagem. Juntei-me a um grupo de mochileiros de São Paulo e partimos juntos para o Chile. Chegamos a Valparaíso, onde planejei passar três dias explorando o máximo de lugares possíveis. Foi na Praia de San Mateo que tive a oportunidade de molhar meus pés no Oceano Pacífico pela primeira vez. Atravessar a Cordilheira dos Andes foi uma experiência sensacional. A aduana entre Argentina e Chile fica a 3.000 metros de altitude e lá passamos por uma revista geral. Em Valparaíso, fiquei hospedado em uma casa de família que alugava quartos para aumentar a renda. Paguei 3.000 pesos chilenos por dia. Os donos da casa eram um casal de artistas que faziam bonecos de madeira para vender nas ruas. Depois de aproveitar a estadia em Valparaíso, segui para Santiago, a capital do Chile, onde me despedi dos amigos paulistas. Ao retornar para a Argentina, peguei um ônibus direto de Santiago para Mendoza. Durante a viagem de ônibus, fiquei encantado diante do imponente Aconcágua, a montanha mais alta das Américas. Sem pensar duas vezes, pedi ao motorista para me deixar na estrada próxima à montanha. Peguei minha mochila e fiquei admirando o Aconcágua por meia hora, até que a noite começou a cair. Caminhei por uma hora até chegar a um vilarejo chamado Puente del Inca, onde consegui acampar em um galpão velho por 8 pesos. Dividi o espaço com um grupo de hippies que faziam artesanato para vender. No dia seguinte, acordei cedo e decidi escalar o Cerro Banderitos, uma montanha com 3.700 metros de altitude. Após quatro horas e meia de subida desafiadora, alcancei o cume ao meio-dia. O vento estava extremamente forte e precisei enfrentar uma rota não convencional, com pedras soltas e deslizamentos constantes. Por diversas vezes, tive que abandonar meus bastões de caminhada e escalar diretamente nas rochas. A combinação desses desafios com o fato de estar sozinho resultou na escalada mais emocionante que já havia realizado. Não há palavras para descrever a emoção de chegar ao topo. No dia seguinte, decidi me aclimatar e fui em direção ao Aconcágua. Meu objetivo era chegar à Plaza Francia, o acampamento base da face sul, mas infelizmente, cerca de 10 minutos depois de cruzar uma ponte sobre o rio Horcones, fui impedido pelos guardas do parque por não possuir a autorização necessária. Recebi uma advertência e tive que sair do parque para evitar uma multa. Na verdade, meus planos eram ainda mais ambiciosos. Além de apreciar a face sul da montanha, eu também queria me aclimatar para escalar o Cerro Quebrada Blanca, com aproximadamente 4.500 metros de altitude, que fica próximo à entrada do parque. Após sair do parque, retornei a Puente del Inca para pegar minhas coisas e montar um acampamento base mais próximo do Quebrada Blanca. Foi nesse momento que percebi que minhas chances eram quase nulas. O gás do fogareiro havia acabado, não tinha mais alimentos para o café da manhã, açúcar, protetor solar e vários outros itens essenciais estavam esgotados. Sobreviver naquele lugar tornou-se quase impossível. Alguns suprimentos poderiam ser adquiridos no vilarejo de Puente del Inca, mas a preços elevados. Não havia outra alternativa senão abandonar as montanhas e pegar um ônibus de volta para Mendoza.

Capítulo 8 – Voltando para o Brasil. Ao chegar em Mendoza, deparei-me com a dificuldade de encontrar passagens para vários destinos na Argentina. Acabei conseguindo uma passagem para Córdoba, mas somente para três dias depois. Além disso, encontrar um lugar para dormir também foi um desafio. Tive que convencer o dono de um albergue a permitir que eu montasse minha barraca no gramado, pagando metade do preço de uma cama. Foi um acordo vantajoso. Em Córdoba, passei dois dias até conseguir um ônibus para Santa Fé. Durante esse tempo, fiz várias amizades e vivenciei situações irônicas. Fiquei hospedado em um albergue onde o quarto tinha cinco camas, e o mais engraçado é que nenhum dos hóspedes era do mesmo país. Tínhamos um mexicano, um francês, uma espanhola, uma alemã e um inglês. A diversidade de culturas tornou a experiência ainda mais interessante. Após quase dois dias trocando de ônibus, finalmente cheguei ao Brasil. Quando desembarquei na rodoviária de Porto Alegre, eram cinco horas da manhã. Decidi tomar um café da manhã para começar a me readaptar de ambiente. Cheguei em casa por volta das sete horas da manhã, com apenas 12 pesos no bolso, o que mal pagaria uma refeição. Deixei para trás as montanhas e todas as pessoas incríveis que conheci durante essa viagem.No entanto, espero em breve retornar às montanhas, pois é um lugar que aproxima o ser humano da natureza e de si mesmo. Guardarei as memórias dessa jornada com carinho, e elas me motivarão a embarcar em novas aventuras no futuro.

Confira algumas imagens da viagem:
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