Expedição ao Cerro Aconcagua – Temporada 2004/2005

Afinal! Vocês beberam ou fumaram? Esta foi a pergunta de um amigo ao confessar-lhe que planejava escalar o cerro Aconcágua durante a transição entre o ano de 2004 e 2005. Pode parecer loucura para alguns, mas este era o meu desejo e de meu companheiro, Francisco BenHur Luchese, amizade cultivada em um campeonato de escalada esportiva indoor e reforçada pelo ciclismo nas estradas de nossa região. O cerro Aconcágua (cujo significado, em língua aymara é “sentinela de pedra”) é a mais alta montanha fora da cadeia do Himalaia e um troféu para qualquer montanhista do mundo. Possui dezenas de diferentes vias de ascensão, desde caminhadas montanha acima, sem necessidade de conhecimentos técnicos (via “normal”), escaladas em glaciar (via dos polacos) ou escaladas extremamente técnicas (como a parede sul, considerada uma das paredes mais difíceis de todo o mundo). Bem antes de começarmos nossa aventura iniciamos nosso treinamento físico orientado pelo Instituto de Medicina Esportiva da Universidade de Caxias do Sul em maio de 2004, que por si só já foi uma provação, intercalado por escaladas em rocha e pedaladas em terra e em longa distância em asfalto. Em 20 de dezembro de 2004, com equipamento completo (roupas de alta montanha, barracas, botas duplas, piquetas, grampões de gelo, fogareiros de altitude, headlamps, rádio VHF, etc.), iniciamos a jornada até Mendoza de ônibus (já que o peso de nossa carga, aproximadamente 40Kg cada, inviabilizava a ida por via aérea dado o custo do peso excedente). A aventura começou aí, pois, embora o sistema viário argentino seja excelente, é igualmente confuso e desorganizado. Levamos 3 dias para chegar a Mendoza, com um pernoite não programado em Córdoba, no centro da Argentina. Em Mendoza tratamos de contratar as mulas (única forma de transporte de carga dentro do parque provincial Aconcágua), comprar mantimentos (para meu desespero não encontrei nosso amado charque nos supermercados, no entanto doce de leite não faltou) e retirar o permisso de escalada (salgados US$ 300,00) essencial para entrada no parque, além de assinar um documento isentando o governo argentino de qualquer responsabilidade (na realidade o documento dizia, em palavras mais estruturadas, é claro, que éramos insanos, que reconhecíamos nossa condição mental e que nos dispúnhamos a enfrentar qualquer problema, inclusive a morte sem nenhum remorso). Dia seguinte vamos a Los Penitentes, a poucos quilômetros da entrada do Parque Provincial Aconcagua, já a 2.800 metros de altitude, onde passamos uma noite numa hosteria para aclimatação, sem antes realizar uma caminhada de 16Km até Puente del Inca para visitar ruínas de antigas termas no local, e prestar uma homenagem aos que pereceram na montanha, visitando o cemitério do andinista, aí situado. Em 24 de dezembro iniciamos nossa caminhada até Confluência (3.300 metros de altitude), primeiro acampamento de aclimatação. O trecho, apesar dos 25Kg de peso da mochila é relativamente fácil e bastante bonito, pois ainda existe vegetação rasteira a esta altitude e toma aproximadamente 4 horas para ser cumprido, numa extensão total de 8Km. Ficamos duas noites acampados em Confluência (assim chamada porque representa o encontro do rio Horcones inferior e Horcones superior), aí passando a noite de natal, comemorada com panetone e doce de leite. No dia seguinte fizemos um trekking até a temida parede sul (16Km ida e volta), que impressiona pela sua imponência. A seguir, mochilas nas costas (pesando exatos 23kg cada) empreendemos nossa caminhada até o acampamento base da face noroeste do Aconcágua, para tentar ascender a via “normal” da montanha. O trajeto de 20km que separa o acampamento Confluência do acampamento Plaza de Mulas (acampamento base do Aconcagua na face noroeste) é uma provação: a partir de 3.500 metros de altitude inexiste qualquer vegetação, resultando em um cenário de aridez e solidão indescritíveis, sempre açoitados por um vento gélido. A progressão é lenta e penosa, pois a imensidão das montanhas ao redor dão a impressão de que, por mais que se ande, não se saia do lugar, especialmente em Playa Ancha, que faz jus ao nome. Exaustos, já tendo caminhado 6 horas e cruzado inúmeras vezes o rio Horcones superior, damos de cara com a Costa Brava, uma gigantesca moraina (grande acúmulo de pedras e detritos originários do movimento do glaciar Horcones superior), de inclinação média de 30 a 40 graus, situada a 3.950 metros de altitude. Outra grande provação à nossa condição física já beirando o esgotamento. Iniciamos a escalada pela trilha existente (que nem sempre era tão visível, dado o movimento da moraina durante o período de degelo). Para piorar as coisas começou a nevar e o vento a aumentar. Decidimos bivacar (acampamento provisório) em refúgio Ibañes, um alojamento militar argentino completamente destruído por uma avalanche um ano após sua conclusão. No dia seguinte, com tempo bom novamente, empreendemos a dura caminhada pela Costa Brava e chegamos a Plaza de Mulas (4.330 metros de altitude) onde registramos nosso ingresso no acampamento junto aos guarda-parques e aproveitamos para verificar nossa saturação de oxigênio. Meu exame marcava 85% (o normal, ao nível do mar é de 97 a 98%) e o de Benhur 79% (que apelidei carinhosamente de Pancho, apelido típico de Francisco entre os argentinos, mas que o deixava irritado). Isto me deixou preocupado, mas uma revisão médica dois dias depois já demonstrava melhor aclimatação, com cifras de 88 e 86% respectivamente. Plaza de Mulas é uma torre de babel, com expedições de todo o mundo e mais de duas centenas de pessoas se aglomerando em uma verdadeira cidade de barracas. Tivemos oportunidade de conversar e conhecer vários montanhistas de todo o mundo, uma experiência inesquecível. Mesmo a esta relativa baixa altitude, qualquer esforço físico era traumatizante, pois o microclima da região é extremamente hostil (falta de vegetação, umidade relativa do ar extremamente baixa e pressão atmosférica mais baixa, inclusive quando comparada com montanhas do Himalaia em altitudes semelhantes), isto sem falar na obrigatoriedade (e martírio) de engolir de 6 a 8 litros de líquidos diários para evitar o mal da montanha e as subseqüentes idas e vindas freqüentes ao toalete (na realidade uma latrina). Após 3 noites de aclimatação iniciamos a escalada até Plaza Canadá (5050 metros de altitude), fazendo o transporte de mantimentos e combustível para o acampamento superior. Cometemos então nosso primeiro grande erro: o tempo estava encoberto e muito frio e fomos surpreendidos, no meio do caminho por uma nevasca seguida de um white out (condição extrema de redução da visibilidade, onde perde-se a sensação de equilíbrio pela falta de referenciais). Deixamos as cargas próximas a Plaza Canadá e voltamos rapidamente ao acampamento base, já ao final da tarde. Esta experiência mal fadada na realidade custou-me a escalada, pois adquiri uma faringite aguda que me martirizou pelos próximos dias e, a despeito do tratamento com antibióticos não dava sinais de melhora. Decidi então retornar, pois fui aconselhado pelos médicos do acampamento base a descer a altitudes menores, pois dificilmente melhoraria naquela altitude. Benhur resolveu tentar a montanha em companhia de Sérgio, um curitibano que tentava escalar o Aconcagua em solitário e subiram a Plaza Canadá, onde pernoitaram e no dia seguinte foram a Nido de Condores (5.300 metros de altitude), onde passaram uma noite terrível, com ventos de 80 a 100Km horários e sensação térmica abaixo de 25 graus celsius negativos. Mesmo assim tentaram a ascensão para o cume na madrugada, sendo vencidos pelo cansaço, frio e o vento impiedoso, desistindo da escalada. Soubemos mais tarde que este ano ocorreu o fenômeno el niño (aquecimento das águas do pacífico) e que alterou o clima da região, tornando-o ainda mais agressivo, razão do baixo índice de escaladas bem sucedidas ao cume do aconcágua. Enquanto Benhur tentava o cume escalei o Cerro Bonette (5.300 metros de altitude), na face oposta a parede oeste do Aconcagua, podendo vislumbrar, de seu cume, toda a magnitude desta montanha e, a despeito do extremo cansaço dada minha condição física debilitada pela infecção respiratória, sentir aquela sensação indescritível de euforia e regozijo por ter superado meus limites, por contemplar a imensidão da natureza e ter consciência da insignificância de meu próprio ser em seu contexto, fator que leva a maioria dos montanhistas a praticar este esporte e tão pouco compreendida por aqueles que não o praticam. O retorno foi também penoso, pois os 28Km que separam Plaza de Mulas do Acampamento Horcones (entrada do parque Provincial Aconcagua), constituem uma caminhada extremamente penosa. Poucas vezes em minha vida senti-me tão próximo a exaustão completa. A visão da entrada do parque, com sua laguna rodeada por casais de namorados e famílias com crianças brincando, em mangas de camisa, me pareceu uma visão surrealista após 14 dias de acampamento em barracas, suportando temperaturas de até 25 graus celsius negativos e ventos impiedosos beirando 100km horários, sem banho, alimentando-se de comidas pré-prontas, mesmo quando o apetite não existia, devido aos efeitos da altitude (sem falar nos “toaletes”, onde meu grande medo era cair dentro de um deles. Se isso acontecesse acho que pediria para amputarem a perna). Ao sair do parque, em meu check out obrigatório ( o permisso de escalada somente autoriza permanência de no máximo 20 dias) soube do acidente envolvendo dois brasileiros, Eduardo Alvarenga Silva e Rita de Cássia Bragatto, que, após terem atingido o cume do Aconcagua foram obrigados a bivacar ao final da grande canaleta (6.400 metros de altitude) e aí passar a noite, sendo socorridos pela manhã, mas resultando na morte de Eduardo. Este fato me deixou profundamente sensibilizado, pois havíamos conversado em Plaza de Mulas e me pareceram um casal extremamente simpático, cordiais e bem preparados (já haviam escalado no maciço Condoriri, na Bolívia, onde também estive em 2003 e tinham se aclimatado previamente escalando o Cordón del Plata, nas redondezas de Mendoza, em cotas acima de 6.000 metros de altitude). Este fato consternou toda a comunidade montanhista, no entanto é sempre um risco a ser corrido e normalmente pouco compreendido por aqueles que nunca foram picados pela “mosca da alta montanha” e contraído sua doença, que, da mesma maneira como as lendárias sereias incitam os marinheiros a acompanhá-las ao mar, desenvolve a compulsão nos montanhistas para enfrentarem novos desafios, colocando seu limite físico e psicológico sempre um passo adiante. Até logo Aconcágua. Nos veremos novamente.

* Mauro Sérgio Belló Bertelli é médico e Francisco Benhur Luchese é representante de laboratório farmacêutico.

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