Escalada invernal no Cordón de Los Ansilta (2003)

Sempre que emprestava ou alugava meus equipamentos de escalada de alta montanha para uns amigos de Porto Alegre dizia: – Ô galera!!! Um dia vamos fazer uma escalada juntos. Chegou a hora!! O Leandro Bazotti (Baza) num contato telefônico antes do inverno já havia intimado para fazermos uma escalada invernal no Cordão dos Ansilta, próximo ao Cerro Mercedário, 6.776m, na Argentina. No início de Agosto de 2003, o Humberto Câmara Júnior (Suíça) me ligou solicitando meus serviços técnicos para a limpeza da fachada externa de uma empresa, num prédio de 22 andares, no centro de Porto Alegre e para logo depois irmos para a montanha com o Baza. Que loucura, 20 dias fora, arrumar tudo, organizar as contas, primeiros apoiadores: Foto Cine Caxias com o Aires e Prado Distribuidor com o Milton, pedir grana e coisas emprestadas, irmãs, amigos, empresas do ramo, muitas dificuldades em função de ser tudo em cima da hora, mas o que é pra ser será!! O Suíça e o Baza vieram com o apoio da Snake e da Vertex e o contato com a Transportadora Pellenz (para uma carona até Mendoza, na Argentina). Uma bonita e desgastante semana em Poa antecedeu a partida, que ocorreu em 15 de agosto as 13:30 horas na Pellenz em Caxias. No caminho, entre os municípios de Candelária e Cabrais Novos os enormes e convidativos paredões de rocha “Cerro Branco” e “Botucarai”. Após uma noite no ônibus da Marcopolo chegamos em Uruguaiana, na garagem da Pellenz, onde acertaram as papeladas para passar nas aduanas. Passando a noite no ônibus, na fila para entrar na aduana Argentina e saímos de Libris, somente as 18 horas de 17 de agosto.

O relato, agora, será transcrito conforme diário de anotações.

18.08.2003 – Entre Rio Cuarto e Mendoza passamos uma tempestade de areia, visibilidade a menos de dez metros, as 14:45 horas. As 20 horas chegamos em Maipu, de carona com Diego Tolin, nosso anfitrião, com quem tomamos umas caipiras nesta mesma noite.

19.08.2003 – Churrasco e soja tostada ao meio dia, Danilo, Diego, Mauricio. Afiamos as ferramentas técnicas (grampons, piolets e piquetas) com o Pink (Marcelo). Algumas de nossas ferramentas eram projetos de montanhistas caxienses. O Suíça foi com o piolet básico produzido pelo Ígor Tschoepke Goedel e eu fui com a piqueta técnica produzida pelo Thomas Schulze. Ambas demonstraram-se eficientes, com alguns detalhes a serem corrigidos. Valeu galera!!!

20.08.2003 – Diego nos levou ao terminal de ônibus de Mendoza onde pegamos ônibus para San Juan. Saia as 13 horas e custava 10 pesos. De San Juan pegamos ônibus para Barreal, 1700m. Saia as 19 horas e custou 15 pesos. Chegamos em Barreal a uma da manhã e bivacamos (grana restrita) na frente da cabana que Ramon Ossa, proprietário da pousada Dona Pipa, nos havia deixado reservada.

21.08.2003 – Cedo da manhã, víamos todo o cordão de montanhas, num total de sete, e ao lado delas, o Mercedário, 6770m. Acertamos o traslado para o sopé da montanha em troca de uma corda nova, cerca de 360 pesos, barato por sinal e com os mapas e as recomendações de Ramon, além de uma foto, escolhemos escalar o 3 de Ansilta. As 14 horas partimos com Diego Ossa (filho de Ramon) a bordo de uma Land Rover, 4×4, e logo cruzamos o Rio de Los Patos. Durante o caminho de aproximadamente 2 horas, Diego Ossa contou-nos sobre a fauna e flora local e sobre as civilizações que ali habitavam antigamente. A região que cruzamos é uma faixa fitogeográfica denominada “Puna”, com plantas realizando a fotossíntese somente nas pontas e outras, totalmente verdes, realizando a fotossíntese por completo. Plantas de caule e galhos duros e espinhentos, não ultrapassando um metro de altura. Ali mesmo haviam as nascentes de água chamadas “Vegas”, abrigando vida animal e vegetal a sua volta e algumas dessas nascentes sendo destruídas pelo pisoteio do gado ali introduzido pelo homem atual. Diego também falou-nos sobre as civilizações que ali viveram: os “La Fortuna” a aproximadamente 12000 anos antes de Cristo, “los Morrillos” a 8000 anos antes de Cristo e “Los Ansilta” de 2000 a.c. até 500 depois de Cristo. Disse que nenhuma das civilizações se conheceram e se extinguiram ninguém sabe por que. Viviam em grupos pequenos de no máximo 150 pessoas. Seus resquícios eram perceptíveis a olho através das pinturas nas grutas, dos resquícios de seus objetos de caca e dos restos de seus alimentos, sempre jogados no mesmo lugar, criando montes ainda existentes e de fácil pesquisa, inclusive com registros de pesquisadores universitários em 1973. Diego deixou-nos em “Morrillo Chato”, 2700m, onde haviam as principais grutas naturais e próximo de um refúgio parcialmente sem cobertura (telhado) onde nos apanhou nove dias depois. Ainda neste dia, já sozinhos, cruzamos um pequeno vale e no vale seguinte, conforme indicação do Diego, descemos uma grota de quase cinqüenta graus de inclinação (terrível com as big mochilas) que nos levou, já, a uma parte bem avançada do caminho de aproximação no vale principal e bivacamos na gruta de mais fácil aproximação e perto da água. Sensacional; fogueira e “sonho acordado” com os índios, que influenciaram toda a expedição, do início ao fim, positivamente é claro!! Principalmente no que se refere ao respeito e a preservacão do local. “O tema: lixo na montanha, posteriormente, foi apresentado à Associação Caxiense de Montanhismo para entrar em discussão no próximo cronograma de atividades”. Até aí, nesta gruta, a 2850m, foram umas três horas de trekking “pesado”.

22.08.2003 – Após um belo café da manhã, arrumamos as coisas e partimos vale acima. Bela e árida paisagem, pelos de guanaco na vegetação espinhenta. Após umas quatro horas ininterruptas, carregando tudo, montamos nosso segundo acampamento, novamente bivaque e bem mais exposto, a 3450m e atrás de uma grande pedra, acompanhada de um “servicinho” de deslocamento de pedras, montando uma contenção para o vento, também chamado de “pirca” pelos locais. A noite, dez graus negativos. Ainda conseguimos lenha, e com fogueira ficou mais fácil. Medo, saudade e pensamentos estranhos rondam minha cabeça.

23.08.2003 – Esperando o sol bater para levantar, +- 9 horas. Café legal e vamos subindo. Aproximadamente quatro horas de trekking “pesado” e já vendo o 3 de Ansilta, ficou mais animador montar o terceiro acampamento. Novamente exposto, obrigando-nos a construir grandes pircas. Desta vez, montamos a barraca e construímos um platô na encosta, a 3650m.

24.08.2003 – Após uma excelente noite e depois um bom café da manhã, fizemos um trekking em direção ao campo base, observando 3, 4 e 5 de Ansilta e retornando, pensamos/calculamos a escalada final em aproximadamente 12 horas. Começamos a derreter gelo para obter água, até encher 3 térmicas e 3 cantis. “O Suíça ta se fazendo, meio mal, uma certa dor nas costas, talvez pelo excesso de peso que estávamos carregando. Ele esta passando diclofenaco dietilamonio (anti-inflamatório), mas já ta melhorando”. Eu e o Baza fomos subir um nevado de uns 100 metros, aproximadamente 45º de inclinação. Treinamos contenção de quedas, subida em zigue-zague e travessia sobre gelo e rochas, com os grampões; também algumas fotos promocionais. Jantamos polenta, tomates secos e um cogumelo cada? O chef Baza viajou.

25.08.2003 – O campo base é aqui mesmo. A cada momento aperfeiçoamos nossa rota de ataque, tornando-a mais rápida e segura, observando horário, sol e temperatura. Com o corpo doido dos tombos do treinamento, todos gemeram à noite, e peidaram.

26.08.2003 – Acordamos as 03:30 horas. Nos vestimos a rigor, tomamos café, enchemos as térmicas com chá quente e depois de tudo pronto, todo mundo fez cocô e se arruma tudo de novo. Partimos somente as 07 horas e chegamos no glaciar escolhido as 09 horas, conforme planejado. No caminho, chorei, lembrei-me da Elisa e do quanto eu a amo, eu sempre quero ir para a montanha, as vezes passando semanas longe, mas nos dias mais importantes (ataque ao cume) é que percebi que eu trocaria este momento, o mais importante, para estar ao lado da minha gata linda, caminhando, tomando café, encochando, amando, ai meu Deus!!! Tomara que estejas bem, estou louco de saudades. As 11:40 horas terminamos a escalada do glaciar, mais ou menos 250 metros. Logo depois fizemos uma travessia por rochas caindo e lembrei-me novamente da Elisa que avisou-me para ter cuidado com avalanche de pedras e entramos na aresta que leva à crista do cume. Passamos por baixo de um contraforte rochoso e entramos numa escalada de terceiro grau, com tudo caindo a aproximadamente 400 metros de desnível da crista que leva ao cume de 5600 metros. Estávamos a 4800 metros e ainda faltava muito para o cume, eram 13:40 horas, já havíamos subido 1000 metros de desnível em 7 horas. No caminho do ataque vimos os guanacos caminhando sobre desfiladeiros gigantes, acostumados a região árida e perigosa.Após a decisão de interromper a ascensão tínhamos todo o caminho de volta. Para tornar aparentemente mais fácil, decidimos descerpor outro glaciar, maior. Foi interessante, adrenante, perigosoe intercalando gelo duro e neve por mais de mil metros, até abase do glaciar, onde estava com as pernas doídas dos movimentos precisos e necessários para cravar os grampões. Continuamos descendo pelo rio de gelo, aproveitando os nevados mais fofos e descendo “culo patin” (contendo a queda) e controlando a velocidade com o piolet. Chegamos quase cambaleando ao campo 3, onde estava a barraca,próximo das 18 horas. Por três vezes tropecei com os grampões,uma em treinamento e duas no ataque ao cume. Chegamos na barraca, tomamos uma sopa, chá e dormimos lá pelas dez horas.

27.08.2003 – Amanheceu terrível, tudo nublado e congelado, o nosso café foi as 11:30 horas e ainda tínhamos que descer até o campo 1, na gruta. No caminho, passamos pelo campo 2 e recolhemos alguns materiais que havíamos abandonado, para não ter problemas com Los Ansilta. Chegamos ao campo 1 as 17 horas. Acendemos uma fogueira, jantamos e contamos histórias até a 01 hora.

28.08.2003 – Levantamos lá pelas dez horas, tomamos café, conversamos sobre os sonhos da noite e falamos mal da vida alheia, sem ressentimentos. Lá pelas 14 horas começamos a nos arrumar para descer até o refúgio, perto de Morrillo Chato. Descida interminável. No caminho visitamos mais umas grutas com inscrições indígenas e logo depois pudemos observar as grandes pegadas de puma. Interminável descida tentando encontrar o refúgio e após mais ou menos quatro horas achamos. Água perto, lareira, lamparina, “lenha”(pedaços da casa do Ramon Ossa) e só uma peca com telhado, alem de camas sem colchões. Luzes de Barreal (4 mil habitantes) ao fundo e frestas no telhado onde víamos as estrelas.

29.08.2003 – Noite tranqüila, dormimos bem. Ramon chega 10 minutos antes da hora, de Land Rover e as dez horas chegamos a Barreal. Banho, cerveja litro, pizza e “pão de banha”. Como o ônibus para San Juan só saia as 19 horas, Ossa conseguiu um transporte alternativo (bagageiro de uma caminhonete, junto com uma mudança. Primeiro o Suíça pede para trocar de lugar, abre a porta do bagageiro, em movimento, e vomita. Um minuto depois o Baza põe-se ao lado e também manda ver. Viagem terrível e as 19 horas partimos de Sam Juan para Mendoza.

30.08.2003 – Almoço com o “Grupo Esperança”, escaladas, dicas de ecologia, ACM e APECAM. A noite festa na casa do Diego Tolin, nosso anfitrião e novo grande amigo.

31.08.2003 – O Marcos me deu carona até a rodoviária onde me despedi da galera. Foi emocionante, parece que éramos amigos de infância.

01.09.2003 – Em Santa Fé, enquanto aguardava o ônibus para Libres, conheci um pessoal muito legal. Hugo Aladino Bonis, fez papel de guia e levou-me para conhecer a cidade, parcialmente destruída por uma enchente recente e ainda com muitos desabrigados, vivendo em barracas doadas por outros países. Uma triste visão mas um espírito de renovação no ar, com todos trabalhando para por as coisas em ordem.

02.09.2003 – Cruzo a fronteira de van, tento uma carona no posto dos imigrantes e acabo pegando o ônibus para Porto as 12:30 horas. Cheguei em Caxias a uma da manhã, feliz, endividado e com muita história para contar.

Alguns dias depois, recebi um telefonema do Baza dizendo para mim ligar para a SNAKE e combinar como retirar minha bota de trekking (Apinist), patrocinada. Nem acreditei, pareceu-me um reconhecimento pelos quatorze anos dedicados ao esporte do montanhismo. Pago para ver as aventuras e escaladas que passarei nos próximos dias em companhia deste excelente calçado.

Confira imagens da expedição:

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